sábado, abril 29

Acesso, literacia, meio caminho andado

Tratar o igual como igual e o desigual como desigual
Quem está doente e entra num centro de saúde ou num hospital recebe o diagnóstico do que padece e um acolhimento que continua a tratar todos da mesma maneira. A igualdade que deveria facilitar o acesso acaba por travá-lo, já que quem é menos favorecido, porque tem menos meios ou conhecimentos, perde-se mais vezes no caminho que terá de percorrer para poder tratar-se dentro do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
À semelhança do que acontece noutras dimensões da vida, nem tudo o que parece ser acaba por ser. “Em abstracto, poder-se-ia considerar que um sistema de saúde que garantisse ‘oferta de serviços’ estaria a cumprir a sua missão em termos de acesso. Sabemos, contudo, que a simples ‘disponibilidade’ de serviços não esgota todas as vertentes do acesso”, explica Marta Temido, presidente da Administração Central do Sistema de Saúde.
Por mais questões que possam ser colocadas sobre o funcionamento do SNS, “não” é uma resposta que se repete. A responsável exemplifica: “É assegurado que quem vive em territórios de baixa densidade dispõe dos mesmos serviços de quem vive no litoral? A população está protegida do risco financeiro de adoecer ou sujeita a pagamentos diretos elevados no momento do consumo? São oferecidos horários de atendimentos alargados e espaços de espera adequados? Discrimina-se positivamente os mais frágeis?”
Os estudiosos do sector sabem que viver longe dos centros urbanos, ter rendimentos reduzidos ou pouca instrução ou literacia em Saúde, por exemplo, são barreiras para quem acede aos cuidados. Para livrar o caminho de obstáculos é preciso “redefinir o funcionamento das organizações em razão dos interesses dos doentes e não apenas da conveniência dos prestadores”, afirma Marta Temido. Ao contrário do slogan, não somos todos iguais: “É preciso tratar o igual como igual e o desigual como desigual.”
Quem está doente quer ser tratado como e quando precisa e não como é a regra no sistema. A informação trouxe conhecimento e exigência. “Para as pessoas, a qualidade do seu percurso nos cuidados de saúde em buscas das respostas de que necessitam e dos resultados que desejam é algo que importa, que é tangível”, salienta Constantino Sakellarides, professor catedrático jubilado de políticas de saúde e coordenador da equipa estudos para avaliar a reforma dos cuidados primários.
Mais do que saber como funciona o serviço, o cidadão quer “que haja um caminho próprio que o leve no tempo certo, ao lugar certo, às pessoas certas”, afirma o professor. “A consciência da necessidade desta transformação — das organizações para as pessoas — é hoje a principal força transformadora dos sistemas de saúde europeus.”
E no dia a dia a transformação terá de notar-se no primeiro nível de acesso. Nos cuidados primários implicará mudar muita coisa. “A nível nacional e regional, dar a todos os portugueses a oportunidade de terem uma equipa de saúde familiar ou dotar todos os centros de saúde com centrais telefónicas, páginas web interativas e quiosques eletrónicos inteligentes, utilizando a tecnologia de proximidade para garantir uma acessibilidade fácil”, diz o presidente da Associação das Unidades de Saúde Familiar, João Rodrigues.
Até em aspetos mais ‘terrenos’ é necessário fazer muito melhor. O médico dá alguns exemplos: “Qualificar a acessibilidade física, colocando preferencialmente todos os serviços no mesmo piso ou com elevadores ou rampas para substituir as escadas; estruturar horários de atendimento em função da vida profissional dos cidadãos e dos transportes públicos.” E no Interior, “com muita dispersão geográfica, criar-se o conceito de ‘consultório móvel’ totalmente equipado para ir ao encontro da população”.
Mais uma vez, como em noutras dimensões da vida, há um preço a pagar. “Intui-se facilmente que esta nova centralidade (o “percurso é meu”) torna mais evidente a necessidade de investir na capacidade de as pessoas tomarem decisões mais inteligentes sobre a saúde e sobre a forma como utilizam os cuidados, aquilo a que chamamos literacia em saúde”, alerta Constantino Sakellarides.
Literacia em Saúde é ‘meio caminho andado’
Mesmo quem mais se preocupa com as questões financeiras e económicas garante que “a longo prazo, o elemento central será as necessidades de saúde da população e não os custos de prestar cuidados ou as fontes de financiamento para dar proteção financeira, como os seguros públicos ou privados de saúde”, explica o economista de Saúde Pedro Pita Barros. “A sustentabilidade financeira do SNS vai ser garantida através de hábitos de vida mais saudáveis, da capacidade de uma nova visão para o SNS mais flexível em acomodar a participação das pessoas na gestão da sua saúde e da sua doença.”
Em termos individuais, os desafios serão pagar as contas e saber o que fazer. “No SNS como o conhecemos, as principais barreiras financeiras estão na despesa com medicamentos. As taxas moderadoras, por mercê das isenções que existem, não são o elemento de despesa mais relevante e também não são os custos de transporte. A maior despesa decorrente de um contacto do cidadão com o SNS está nos medicamentos a comprar”, afirma o professor da Universidade Nova de Lisboa.
O saber, neste caso, ocupa muito lugar. “Numa visão para o futuro, as barreiras de conhecimento sobre como o cidadão pode relacionar-se melhor com o SNS serão parte importante das barreiras de acesso”, diz Pedro Pita Barros. “Um SNS que seja mais flexível na resposta que dá aos cidadãos terá maior diversidade de opções de relacionamento, que geram a necessidade de conhecimento dos cidadãos.” E o professor dá um exemplo: “Ainda hoje, passados dez anos, nem sempre o cidadão sabe se a unidade de cuidados primários que utiliza quando se sente doente é USF-A, USF-B ou UCSP nem o que as siglas significam.” Sabe?
Semanario expresso, textos Vera Lúcia Arreigoso, 29.04.17

Nota: "Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados". link link 
Relatório “Literacia em Saúde em Portugal” (2016), FCG link 
Despacho n.º 3454/2017,24.04.17, principais ações a desenvolver em 2017, no âmbito do "Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados". link